Bar, Boteco ou Botequim: O que está por trás dos estabelecimentos queridinhos do Brasil?
Luiz Antônio Simas, escritor, professor, historiador, compositor brasileiro e babalaô no culto de Ifá, afirmou que "os sabichões que manjam de etimologia garantem que a origem remota da palavra botequim está no termo grego apothéké (depósito); que originou também botica, biblioteca e bodega. Pois o bom botequim é isso tudo: um centro de difusão do saber, como as bibliotecas; um lugar onde se preparam medicamentos para o corpo e a alma, como as boticas (o Bode serve um chá de macaco que ressuscita defunto); e uma taberna onde se come e se bebe com simplicidade, sabor e sustância, como as bodegas".
Bode Cheiroso é um botequim localizado perto do Maracanã, no Rio de Janeiro, que sobrevive à margem dos ilustres conceitos da modernidade de um boteco criado para os hipsters que preferem a gentrificação e a apropriação de símbolos culturais brasileiros a sujar os pés nas bibliotecas do saber público com uma boa cerveja gelada.
O bar está aberto desde 1945, mantendo ocupadas gerações de uma mesma família e alimentando estômagos vazios e ansiosos por uma comida quente sem que a conta da mesa comprometa o pagamento da luz ou da água. Lá se come pernil, costelinha com feijão-tropeiro, moqueca de sururu e boas porções de torresmo, a barrinha de cereal do botequeiro.
Quero desafiar os navegantes de todo o Brasil a procurar pelo "Bar Dois Irmãos" no mapa. Em cada bairro brasileiro, devem existir pelo menos dois dessa categoria que perduram a trancos e barrancos. Essa categoria sobrevive ao longo dos anos sem agência de relações públicas e sem design moderninho. O segredo? A magia do boteco.
Ninguém — até hoje — conseguiu explicar a magia desse espaço tão difundido, plural e acolhedor que a cada esquina reúne amigos para uma partida de cartas ou sinuca, em que cada um que perde paga uma rodada do elixir dourado da cerva. As crianças ainda juntam os trocados para encher os bolsos de pirulitos.
No boteco, a disputa geracional é uma realidade distante pertencente ao mercado publicitário e à concorrência entre estabelecimentos de mesmo nome que foram projetados para outra gente. No boteco raiz, mais velhos e mais jovens se encontram amistosamente no fim do expediente ou nos fins de semana para acompanhar uma partida de futebol ou apreciar uma iguaria bem temperada que remonta a uma memória, muitas vezes, migrante.
Meu pai, Antônio, criou-me no Bar do Tonho por mais de 20 anos. Enquanto minha mãe trabalhava fora, o mineiro com mão boa pra cozinha preparava sarapatel, galinhadas e torresmo e importava as mais ricas e variadas cachaças de sua terra natal: Salinas, em Minas Gerais. Guardamos muitos registros fotográficos nos quais estou com poucas semanas de vida num carrinho ou no colo do homem mais querido da região; ao fundo, o calendário do açougue local, uma caixa de som e a infiltração na parede compõem o ambiente.
Pelos quatro cantos da favela em que vivíamos, a notícia se espalhava: as grandes caixas repletas de farinhas, manteigas de garrafa, queijos, cachaças e temperos desembarcaram mais uma vez em São Paulo para a alegria da comunidade. Então, todos sabiam que o próximo fim de semana seria caloroso.
Mas não é apenas a comida que enche o bucho de memória que mantém esses estabelecimentos abertos. A esse ponto, a conexão cultural entre proprietário e clientes é crucial para a sobrevivência desses espaços — mesmo quando o salário acaba antes de chegar o final do mês.
Na capital brasileira dos botecos, Belo Horizonte, a pesquisadora Geórgia Caetano dos Santos, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), buscou entender o que torna esses espaços tão importantes. Em Minas Gerais, principalmente na capital, o que torna os botecos tão especiais é o senso de pertencimento do mineiro.
"Os entrevistados (durante a pesquisa para a tese) narravam sua ligação com os bares com muita nostalgia. Citaram momentos da infância em que estiveram nos botecos junto aos pais, tio, avós e ficaram brincando nos ambientes. É uma lembrança de tempos bons para a maioria", analisou Geórgia para a Abrasel.
A capital mineira tem 40.620 estabelecimentos de gastronomia, de acordo com dados do Cadastro Municipal de Contribuintes, de maio de 2022. Desses, cerca de 14 mil são bares. Para Geórgia, apesar da competitividade, para boas estratégias de diferenciação deve haver elementos tradicionais de cada local, a comida típica de cada região e cervejas sendo servidas sempre bem geladas. Também é essencial que as pessoas sejam recebidas, preferencialmente, pelo dono do boteco.
Mas o boteco não é apenas uma biblioteca a céu aberto. No boteco, também está a cura. Há muito tempo, antes de se falar em brasilidade, as boticas e mercearias já expunham suas garrafadas medicinais à base de jurubeba, catuaba e urucum. E foi ao estudo desse tipo de ingredientes brasileiros que a pesquisadora e mixologista Néli Pereira se dedicou.
No livro "Da Botica ao Boteco: Plantas, garrafadas e a coquetelaria brasileira", Néli nos leva em uma divertida viagem pela história dos drinques até se tornarem os que conhecemos hoje; de remédios desenvolvidos para reis e faraós à descoberta das técnicas para ativar princípios ativos que já serviram para cura e hoje adicionam sabor aos coquetéis alcoólicos. Sempre questionadora, Néli mostra como saberes ancestrais se tornaram produtos comerciais e como usos medicinais viraram um passo a passo para um bom drinque.
Esses estabelecimentos também representam resistência política e advogam pelo direito à cidade. Em grandes metrópoles como São Paulo e Rio de Janeiro, os botecos sobrevivem contra a onda gentrificadora que se apropria de seu significado e o esvazia em cada canto das cidades.
Recentemente, na capital paulista, um desses espécimes viralizou no TikTok. Um frequentante inicia o vídeo comentando a mais nova aberração-empreitada em Pinheiros: um bar que traz em sua narrativa visual a promessa de um boteco, mas não passa de outro empreendimento sudestino milimetricamente calculado; ali jaz a cultura, as identidades e as pessoas, mas sobrevive a ambição da classe média paulistana.
Lá onde se toma vinho e se delicia aperitivos pouco fartos, desprovidos de tempero e história, projeta-se um futuro tremendamente horroroso para quem ainda vive no Brasil com S. A invenção do outro se materializa após muitas reuniões de branding e estratégia, com qualificados profissionais que dizem saber o que é mais importante de se ter num boteco.
Esses estabelecimentos pré-concebidos no imaginário publicitário tampouco nos concedem a honra de nos esbaldarmos na festa da sociodiversidade — que só é possível num ambiente específico com o som ambiente do que há de mais novo no piseiro, brega, sertanejo, forró, funk ou das mais icônicas canções internacionais dos anos 80.
O que há de ser reinventado nesse espaço está longe de ser o "banho de loja" empreitado por grandes corporações em iniciativas sociais junto a essa ponta de stakeholders. Outrora, um desses empreendimentos desafiou donos de bares da periferia a lidar com a escassez de fornecimento de insumos durante a época mais quente do ano. O que também começou como uma ótima oportunidade de franquia, com melhorias no ambiente, acabou limitando a variedade de produtos distribuídos nos estabelecimentos.
O boteco representa mais que um estabelecimento de consumo no Brasil. É um lugar de encontro, afetividade, troca de saberes e cura dos dias puxados do trabalhador brasileiro. Deve-se incentivá-lo para que seja capaz de abraçar mais famílias e pessoas da comunidade, sem afastar suas raízes e influências. O boteco por si só já contém magia, mas dentro desse ambiente de encantamento ainda há espaço para inovação e borogodó.
O que faz um bom boteco é seu dono que guarda na geladeira o néctar louro que afaga os pedreiros da obra, jovens universitários e os avós de alguns; o proprietário que guarda os causos do bairro na mente vagante de quem tudo vê. O desafio das famílias que se sustentam através de bares e botecos está nas questões estruturais dessas casas do saber. Não negamos que os banheiros poderiam ser melhores e que faltam cartas no baralho, mas não é através da padronização desses espaços que se manterá a sustentabilidade financeira do negócio, tampouco o imaginário do boteco.
O que está por trás dos estabelecimentos queridinhos do Brasil é justo aquilo que o torna tão resiliente ao tempo e importante para a comunidade: as estórias que se fazem na mesa de plástico vermelha, branca ou amarela. Ali um casal teve seu primeiro encontro, senhoras se encontram para celebrar o aniversário de uma matriarca, um filho comemorou a aprovação em um vestibular disputado e um homem chorou seus cornos.
Amei! :)