Meu nome é Suellen, sou brasileira e nasci em São Paulo em 1997. Nesse mesmo ano, o Movimento Zapatista organizou uma marcha que tomou conta das ruas do México. Em 15 de abril também desse ano, o MST levou 40 mil pessoas para as ruas de Brasília em protesto contra o governo de Fernando Henrique Cardoso.
Na astrologia védica, meu nakshatra é vishaka. O que significa que, se há uma palavra para me descrever, é "determinação". Coloco toda minha dedicação em alcançar o que desejo. É por isso que é importante que eu eleja um motivo. Depois disso, basta colocar minha energia toda nele. Eu me comporto de maneira bastante amorosa e respeitosa com as pessoas. Se alguém precisa de mim, sempre vou em seu socorro.
Essa não será a primeira e única vez que escreverei em primeira pessoa. Primeiro, porque me resguardo ao papel de contar histórias — e, nesse ofício, muitas vezes narramos acontecimentos e memórias dos outros. Segundo, porque sinto no fundo do meu coração que esse trabalho é sobre viver o presente, preservar o que veio antes e cuidar do que virá no futuro; isso não se faz só: o resultado é coletivo. Marginal Fiction é um laboratório de curadoria que visa mapear e divulgar os sonhos latino-americanos. Portanto, às vezes serei Maria, Jorge, Juan, Isabel ou Rosália. Nunca só o objeto de estudo, por dezenas de vezes quem conta a história.
Do Sul da Argentina às fronteiras do Norte do México, as histórias dos outros são vividas e contadas diariamente, seja por meio da oratória, numa conversa de bar ou em sermões de avós para netos. As vidas das pessoas comuns me interessam demais. Acho fascinante os saberes e a cultura que se movimentam e expandem como os Andes nas beiradas da América do Sul.
"América Latina" — que era apenas palavras, mas que se consolidou numa ideia de uma cultura única para definir uma identidade continental —, aqui, é abandonada. E, juntando-me ao coro de Miguel Rojas Mix, concordo que "a história da identidade latino-americana é também a história dos diversos nomes da América e das razões pelas quais esses nomes foram impostos".
A pluralidade do Sul Global é, muitas vezes, homogeneizada de tal forma que o Norte consegue se apropriar continuamente das nossas terras, das pessoas e dos imaginários. A ideia de uma cultura única nasceu de um processo de colonização exploratória que até hoje perdura nas narrativas ao Norte.
Eles que são lá de cima são os "desenvolvidos". Exploraram, roubaram, mataram, estupraram, assassinaram e exercem, até hoje, domínio político e econômico sobre nós (os que ficam embaixo). Esse processo acontece de forma que não enxerguemos seus crimes vestidos de progresso. A paz ao Norte nos custa caro. Fizeram de nós emergentes e marginalizados.
Quando nos apropriamos das nossas narrativas e ficamos mais perto uns dos outros, tornamo-nos capazes de compreender, defender e preservar nossas histórias. Somente no Brasil, são mais de 270 línguas indígenas; também se fala português com tempero do Ceará, Amazonas, de Goiás, São Paulo e da Bahia. Temos seis biomas com características distintas que formam culturas alimentares e relações humanas e ambientais diferentes. Há um mundo dentro de cada país e mais 30 países dentro de cada cidade.
Eu, que viajei para os quatro cantos dessa terra, hoje consigo enxergar por que nos sufocam ao vira-latismo: somos uma potência, mas a este ponto você já deve saber disso. Por esse e outros motivos, continuam contando nossas histórias sob uma perspectiva global, eurocêntrica e outsider — é de se causar estranhamento, dúvida, receio e indignação. Nesse sentido, a raiva do marginal emerge de uma ferida aberta no meio da América Latina, trazendo as vozes, os sonhos e as histórias dos outros por meio desse projeto.
Pedro Lemebel, que ecoou a tradição da oralidade por meio da sua escrita rebelde e transmoderna contra a ditadura chilena, inspirou-me a escrever como quem encanta e excita a balbúrdia. Ana Tijoux me ensinou a sacar a voz que estava morta e fazer orquestra. É na costa do Brasil, na terra de São Salvador, que deixo as palavras ecoarem com o vento, enquanto descubro novos meios de curar o que não se guarda no museu.
A memória e a vida dos brasileiros são tão heroicas e emocionantes quanto as dos célebres cavaleiros vestidos de armaduras de aço e representados em pinturas emolduradas em ouro em palacetes por todo nosso território. Uma vez conheci um professor brasileiro aposentado em um hostel em Bogotá; sua barba e seus cabelos muito esbranquiçados chamavam atenção. Enquanto arrumava uma mochila, inclinou a cabeça, e os óculos sabiamente escorregaram pelo nariz, dando um ar ainda mais sério para o que ele viria a me dizer. Mirando-me por cima das lentes, aconselhou:
— Menina, há três coisas que você precisa saber na vida para viver em qualquer lugar do mundo: cozinhar, nadar e falar inglês.
O homem, que outrora foi professor na rede pública do Brasil, contou-me que havia seguido sua profissão a vida inteira e criado os filhos com seu salário, mas que, naquele momento da vida, precisava realizar o sonho de viajar de mochila por onde o coração permitisse.
Nunca me esqueci do homem, nem dos seus ensinamentos. Desejei ter mais tempo para ouvir suas histórias, seus amores e dessabores. É certo que talvez ele nunca descubra que nossa conversa me tocou a tal ponto que me fez iniciar aulas de natação, aprender a cozinhar e contratar uma professora particular de inglês.
Passo quase toda minha vida viajando e são muitas as histórias que me são transmitidas em quartos compartilhados, bares, museus, passeios de barco e longas caminhadas na alvorada. Todas essas histórias são bonitas — mesmo a mais horrível entre elas. Há um universo inteiro dentro de cada pessoa e, quando sacamos a lente antropológica que constitui a rede daqueles fatos atravessados por elas, sensibilizamo-nos ainda mais.
O sonho latino-americano
Se outrora ansiávamos pelo sonho americano (estadunidense), agora imaginamos o sonho latino-americano. No filme Mapa de Sonhos Latino-Americanos, passa-se a história de um engraxate cubano que sonhava em ser poeta e morreu meses antes da filmagem em Cuba. O depoimento de sua esposa conta uma linda história de amor e convivência sobre o marido, que, apesar de sonhar com a poesia, nunca mostrou nenhum dos seus versos para ela, porque tinha vergonha de sua caligrafia.
Um amigo, jovem, professor de ioga e carioca, relatou-me que seu sonho é viver bem e fazer um bom dinheiro com seu trabalho; comunicando, criando conteúdo e apresentando um programa audiovisual que também auxilie as pessoas a viverem melhor, apesar da estrutura social que nos afasta disso. Ele anseia deixar o bem-estar mais acessível, porque acredita que merecemos viver melhor.
Minha mãe, migrante em São Paulo, vinda do norte da região do Vale do Jequitinhonha em Minas Gerais, já me confessou com os olhos cheios d'água que seu sonho era conhecer Ouro Preto — cidade essa que fica apenas a 10 horas de onde nasceu e passou a juventude.
Randolpho Lamonier l Série Profecias
Alguns sonhos vão mais longe. José M. Hernández, filho de imigrantes mexicanos, foi rechaçado mais de 10 vezes antes de poder ir para o espaço. Quando niño, Hernández era fascinado pelas estrelas e pelo espaço e tinha um grande sonho na mente: tornar-se astronauta. Sua história foi contada no filme A Million Miles Away.
Em muitas cosmologias, o sonho exerce um papel político de suma importância na comunidade. É a partir dele que decisões são tomadas, coisas são criadas e os mundos invisível e visível se tornam um só. Os sonhos são experiências reais, sejam aqueles que sonhamos acordados ou que sonhamos dormindo. Deles vem a sabedoria necessária para criar futuros desejáveis.
Meus sonhos são verbos: esperançar e escrever. Por meio da curadoria — esse ofício de preservar e contar narrativas — me desafio a mergulhar profundamente nos saberes e nas vivências cruzadas na América Latina.
Ai que delícia ser Latino!